1-A PRETENSÃO
Em mais um caso de aborto não punível em razão de gravidez originada de estupro, envolvendo agora uma menor de 12 anos no Estado do Piauí, surge nova controvérsia.

A corriqueira nomeação de Curador Especial ao nascituro nesses procedimentos é posta em xeque pela Deputada Federal Sâmia Bomfim. Alega a parlamentar, em pedido dirigido ao CNJ, inexistir base legal para representação de fetos em juízo, bem como não serem eles “sujeitos de direito” a não ser após o nascimento. A Deputada pretende que o Conselho Nacional de Justiça crie “uma diretriz que proíba a nomeação de curadores para defender fetos em casos de crianças e adolescentes grávidas após estupro” (grifo no original). 1 Ainda segundo a parlamentar:

“A nomeação de uma defensora no caso, (,,,), cria uma ‘colisão de direitos’ entre alguém que legalmente não os tem e de uma criança vítima de estupro, a quem o Código Penal assegura a possibilidade de interromper a gravidez” (grifo no original). 2

2-UM ABISMO DE CONTRADIÇÕES E IGNORÂNCIAS FÁTICAS, ÉTICAS E JURÍDICAS

Nietzsche já disse em seus aforismos que “se olhas demoradamente um abismo, o abismo olha para dentro de ti”. 3

Acontece que muitas vezes, mesmo sem o saber, é impossível a algumas pessoas olhar para o abismo a não ser em frente a um espelho, já que o abismo insondável se acha nelas mesmas.

A pretensão da parlamentar acima exposta revela exatamente isso, ou seja, que suas ideias, ademais compartilhadas por muitos, são um profundo abismo de vazio e paradoxos, absolutamente insustentáveis seja sob o ângulo fático, ético ou jurídico.

Quando se refere a uma “colisão de direitos” para afirmar que na realidade se trata de uma falsa colisão porque o nascituro não teria direitos, tal proposição é tão problemática que se torna até difícil de ser contraditada. Vamos tentar:

Para que a proposição seja admissível deve-se pressupor que o nascituro não tem quaisquer direitos, o que é falso. Outra pressuposição é a de que num procedimento de autorização de aborto impunível já é indiscutível o direito da gestante ao aborto, o que, por obviedade também é falso. Ora, se assim fosse não seria necessário procedimento algum para a realização do aborto, afinal este é praticado por médico e no hospital e não por juízes, promotores, advogados ou defensores públicos no Fórum. Significa dizer que a partir do momento em que há um procedimento judicial para que, após a devida e fundamentada decisão, se autorize ou não o aborto, há necessariamente uma “colisão de direitos” a ser ali solvida. Há uma ameaça de lesão a direitos que, por força do Princípio Constitucional da “Inafastabilidade da Jurisdição” não pode ser subtraída da dialética jurisdicional com os corolários do devido processo legal, ampla defesa e contraditório. É disposto no artigo 5º., inciso XXXV, CF:

“A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

E, no mínimo, há que discutir se realmente o caso se trata de um abortamento impunível e, especialmente, se já não se trata de uma gravidez que não comporta a prática do aborto por normas técnicas já que ultrapassado o limiar entre uma vida intrauterina inviável fora do útero e uma vida humana já em condições de parto e sobrevivência, além da questão de que abortos tardios são ainda mais arriscados para a saúde e a vida da própria gestante. As normas técnicas e as recomendações médicas apontam, nesse ponto, para o período de 20 semanas com possível alongamento até, no máximo, 22 semanas. É isso que indica o texto revisado pelo Prof. Dr. Jefferson Drezzet Ferreira, que congrega as posições do “Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo”, da “Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo” e da própria “Defensoria Pública do Estado de São Paulo”, com divulgação em página do “Ministério Público do Estado de São Paulo”: